sábado, 24 de janeiro de 2009

As origens da guerra entre Israel e Palestina
por Michelle Amaral da Silva última modificação 23/01/2009 13:53
Para historiador Christian Karam, a questão religiosa muitas vezes serve como pretexto para encobrir fins políticos e econômicos

Patrícia Benvenuti,da Redação
O reconhecimento do Hamas por parte de Israel como o governo democraticamente eleito dos palestinos e o direito de retorno dos refugiados são alguns dos principais desafios postos atualmente para a criação do Estado palestino. A avaliação é do historiador Christian Karam, estudioso da História do Islã, do Oriente Médio e do conflito palestino-israelense. Em entrevista, ele explica como se deu o Estado de Israel e como a influência de outros países tem prejudicado o processo de paz entre os dois povos
Brasil de Fato – O mundo assistiu estarrecido o terror que o Estado de Israel impoe ao povo palestino. Para entender melhor a origem desse conflito, o senhor poderia recuperar como se deu a criação do Estado de Israel?
Christian Karam - O termo “Sionismo” foi criado em 1885 pelo escritor judeu-austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “Sionismo” basicamente significava uma resposta ao problema nacional judeu que advinha de dois fatos principais: da dispersão judaica em vários países e regiões do mundo; e da sua constituição, em cada um desses países, como uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos, como era o caso da Europa anti-semita do século 19. Assim, a solução sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion”, onde conformariam uma maioria populacional e uma entidade político-estatal independente. Assim, é nesse espectro que surge o sionismo político internacional fundado pelo jornalista judeu-húngaro Theodor Herzl na Europa de fins do século 19 como um movimento nacionalista preponderantemente laico e secular que visava à fundação de um Estado nacional judaico. Após o término da guerra, diante do impacto do Holocausto nazista, a Inglaterra propôs à Organização das Nações Unidas (ONU) a divisão da Palestina entre árabes e judeus. Assim, uma vez aprovada a partilha da Palestina britânica em novembro de 1947, ficou estabelecido que o Estado judeu deveria ocupar 56% do território, enquanto ao Estado árabe competiria controlar os restantes 43%. Já o 1% remanescente de Jerusalém e seu entorno seria colocado sob mandato internacional da ONU. Essa divisão respeitava muito pouco dois fatores essenciais: a ocupação das terras e a maioria populacional, já que grande parte do território seria controlada pela minoria judaica, que somava apenas 30%.
Por que da localizaçõa geográfica, o lugar escolhido para o Estado de Israel?
Penso que pela simbologia histórica e religiosa que a região da Palestina histórica representa no imaginário dos judeus (por mais que isso tenha sido uma construção histórica idealizada dos séculos 19-20), herdeiros da última grande diáspora que os expulsou dali, aquela perpetrada pelos romanos no século primeiro. Em fins do século 19, os sionistas haviam proposto a colonização judaica da Palestina otomana, apesar de terem cogitado outras regiões, como Uganda (na África oriental) e a bacia do rio da Prata, na Argentina. Assim, se em algum momento do período entre-Guerras (1918-1945) especulou-se sobre outro território que não o da província turca da Palestina e, após 1920, aquele da Palestina colonial britânica para a fundação de um Estado hebreu, a imigração e a colonização em curso comprovaram que a decisão pela Palestina turca já havia sido tomada, especialmente quando, a partir de 1917, a Declaração Balfour britânica passou a “ver com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina turco-otomana (de maioria populacional árabe e islâmica). Isso denota o claro apoio à causa nacional sionista por parte do imperialismo inglês, que planejava beneficiar-se da presença de uma terceira força político-nacional na região, principalmente em um contexto de guerra contra os alemães e seus aliados na região, os turcos.
Qual território deveria ser ocupado pelos palestinos?
Se fossem cumpridas as resoluções da ONU, o território que o Estado hebreu hoje teria de ocupar seria aquele anterior às fronteiras de 1967, quando, com o fim da Guerra dos Seis Dias, Israel invadiu e passou a ocupar ilegalmente a Faixa de Gaza (então parte do Egito), a Cisjordânia e Jerusalém Oriental (então pertencentes à Jordânia) e as colinas de Golã, que eram da Síria. Desse modo, o território que hoje constituiria o Estado de Israel seriam aproximadamente 70% da Palestina britânica. Em torno de 13 a 14% dessa área foram conquistados ao território árabe-palestino e anexados como resultado da primeira guerra árabe-israelense de 1948-9. Desse modo, hoje não se fala dos territórios que a partilha da ONU de 1947 determinara para a constituição do Estado árabe-palestino (43%) e do Estado judeu (56%), mas, no caso de Israel, deste percentual acrescido da parcela acima mencionada que foi conquistada na chamada “primeira guerra árabe-israelense” de 1948-9, quando inclusive Jerusalém, que, pela proposta original, seria uma área internacional, teve sua porção ocidental anexada por Israel, que a declarou como sua capital em 1950, embora sem obter reconhecimento internacional. Por outro lado, o território que o Estado palestino ocuparia, caso hoje fosse declarada sua criação, não seria mais de 20 a 22% da área da Palestina britânica, se fossem mantidos os enclaves de colonos sionistas na Cisjordânia e a ocupação de Jerusalém Oriental. Porém, se ocorresse uma completa desocupação por parte de Israel dessas regiões, então ambos territórios, somados à retirada unilateral israelense da Faixa de Gaza ocorrida em 2005, teríamos os 30% de terras palestinas correspondentes aos outros 70% de território israelense. Em suma, o Estado da Palestina estaria formado pela Cisjordânia, Faixa de Gaza e por Jerusalém Oriental, que o nacionalismo palestino quer ter como sua capital.
A criação do Estado de Israel foi uma proposta da Organização das Nações Unidas. E agora a ONU parece ter perdido o controle sobre a questão. Qual seria a causa dessa "perda de autoridade" ao longo dos anos?
Parece-me que a ONU nunca foi um ator politicamente muito ativo na questão, uma vez que suas principais resoluções, como a que obriga Israel a retirar-se dos territórios invadidos durante a Guerra dos Seis Dias de 1967, nunca foram implementadas. Além disso, durante a Guerra Fria, quem realmente deu as cartas do jogo político foram, em nível internacional, os EUA e a URSS e, em nível regional, além de Israel, o Egito, a Síria, o Iraque e as chamadas “monarquias árabes conservadoras” lideradas pela Arábia Saudita. Após a revolução islâmica de 1979, outro importante ator político que entra em cena é o Irã. E, com o fim da Guerra Fria e a dissolução da URSS, os EUA reafirmam-se enquanto potência internacional hegemônica no Oriente Médio, que é apoiada, importante dizer, não somente por Israel, mas, cada vez mais, pelos árabes conservadores do Golfo Pérsico, pelo Egito e, em menor medida, pela ala mais centrista da OLP, a Fatah, que, na época, dava sua guinada à direita.
Os discursos da Fatah e do Hamas parecem denotar diferenças entre os própriospalestinos a respeito da criação de um Estado. Como podem ser resumidasessas diferenças e como elas interferem no processo de paz na região?Não me parece que os discursos e ações políticas de ambos partidos caracterizam diferenças a respeito da criação do Estado palestino, mas sim demonstram a diversidade política, ideológica e econômica que permeia a questão, ou seja, que tipo de Estado e de sociedade se deseja para a população palestina. No que se refere à adoção de determinado modelo econômico e programa político-ideológico e à formação de alianças regionais e internacionais, Fatah e Hamas divergem em vários aspectos. Aquela, oriunda de uma tradição da esquerda nacionalista e terceiro-mundista dos anos 1960-70, que flertou com o nasserismo e o socialismo árabe, porém sem nunca ter sido comunista, sofreu uma guinada à direita após o fim da Guerra Fria nos anos 1990 e, hoje, não contesta o liberalismo econômico e político dominantes. O Hamas, por outro lado, surgiu de uma conjuntura de crise política: a Intifada palestina de 1987-90. Expulsa do Líbano em guerra em 1982, a OLP, desacreditada e politicamente enfraquecida para lidar com a questão nacional palestina e para lutar contra a ocupação israelense de Gaza e da Cisjordânia, verá nascer um importante adversário, porém, à época, ainda informal e secundário. O próprio Estado de Israel fomentou e armou o Hamas contra a OLP de Arafat e suas facções nacionalistas laicas de tradição esquerdista, a fim de dividir o movimento nacional palestino, e também para tentar lidar com um novo grupo político que fosse mais fraco e, portanto, menos exigente quanto às demandas nacionais palestinas. Inicialmente, o Hamas se absteve de realizar ataques abertos contra Israel. Porém, em pouco tempo, isso mudou, e o Hamas assumiu um importante protagonismo na resistência e no nacionalismo palestinos, ainda numa fase em que sua ideologia e ação política poderiam ser consideradas conservadoras ou “fundamentalistas”. Porém, especialmente após as primeiras crises do processo de paz dos anos 1996-2000, o Hamas vêm assumindo grande parte da ação política e social entre as classes sociais mais pobres e marginalizadas da sociedade palestina, que a Fatah, quando no poder, relevou ao segundo plano, em parte devido ao próprio “aburguesamento” liberal e à corrupção de vários de seus quadros.
A respeito da interferência dessas divergências políticas e econômicas que existem entre a Fatah e o Hamas no processo de paz com Israel, costuma-se afirmar que um dos principais empecilhos seria o não-reconhecimento ao direito de existência de Israel por parte do Hamas. De fato, em algum momento o Hamas terá de repensar a questão e emitir uma declaração formal que reconheça o Estado hebreu, embora já tenha havido vários posicionamentos informais nesse sentido por parte de algumas lideranças. Por outro lado, inimigo que não se reconhece é aquele contra o qual não se luta. E, nesse sentido, a experiência histórica prova que, embora informalmente, Israel e o Hamas têm se relacionado, mesmo que na maioria das vezes seja para divergir e combater entre si. Da mesma forma, Israel, assim como os EUA e a União Européia, precisam reconhecer formalmente o Hamas como partido político e movimento social legítimo da sociedade palestina que o elegeu democraticamente como seu representante no parlamento e no governo, a fim de que se possa partir de um diálogo em um nível pelo menos política e juridicamente igualitário.
Que outros desafios poderiam ser citados para a criação de um Estado palestino?
Outros importantes desafios, que preferiria chamar de direitos palestinos inalienáveis, são: a questão dos refugiados (de três a quatro milhões) espalhados em diversos países do Oriente Médio; a declaração de Jerusalém Oriental (uma vez desocupada por Israel) como sede da capital palestina; a determinação precisa das fronteiras da Palestina, tanto com Israel quanto com os demais países vizinhos (Egito e Jordânia); a suspensão da construção e a posterior destruição do muro que Israel hoje constrói na Cisjordânia, inclusive anexando território palestino, mais conhecido por “Muro da Vergonha”, que somente serve para semear mais segregação entre os dois povos; e, o principal de todos, a retirada total e incondicional de Israel e de suas tropas e colonos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que seria o retorno às fronteiras de 1967. Nesta questão, é preciso mencionar Gaza, pois, embora tenha havido, em 2005, a desocupação unilateral de que falávamos, Israel seguidamente viola o espaço aéreo de Gaza e realiza incursões militares terrestres na região. Da forma como a imprensa e a mídia burguesas têm abordado esta última crise ocorrida em Gaza, parece que o Hamas resolveu pôr um fim à trégua e atacar Israel sem quaisquer motivos, quando, na verdade, Israel se retirou apenas formalmente da Faixa de Gaza em 2005, pois nunca deixou de invadir a região e, inclusive, imiscuir-se nos assuntos de política interna do governo do Hamas, isso sem falar no fato de que nunca o reconheceu como representante político legítimo dos palestinos de Gaza, pois foi democraticamente eleito por estes em 2006.
Em relação ao tema dos refugiados e seu direito de retorno, a solução da questão é bem mais complexa, uma vez que estes reivindicam retornar para as áreas que suas famílias ocupavam quando da criação de Israel em 1948, o que poderia acarretar numa incursão em massa de palestinos ao atual território israelense. Ainda que essa solução fosse implantada, não creio que a maioria dos palestinos que vive na diáspora exerceria esse direito de retorno, pois muitos já possuem laços sociais, familiares e profissionais em outros países. Porém, se esse direito de retorno fosse concedido, ele deveria ser conferido a todos os descendentes dos refugiados de 1948 sem restrições. Parece-me que uma solução diplomática intermediária seria que se procedesse à retirada incondicional de Israel da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental e, assim, através da proclamação de um Estado palestino, o direito de retorno talvez pudesse ser exercido nessas regiões e em Gaza.
Na sua avaliação, qual é o peso da questão religiosa neste conflito?
A questão religiosa muitas vezes serve como pretexto para encobrir fins políticos e econômicos. Para mim, está muito claro (e a maioria dos pesquisadores do tema afirma isso) que o problema é de ordem nacional e, portanto, requer soluções políticas e econômicas de ambos os lados. Assim, volta-se à questão sobre em que tipo de Estado a sociedade palestina quer viver. E a resposta dadas nas últimas eleições, que conduziram o Hamas ao poder, parece ser a rejeição do projeto político-econômico liberalizante da Fatah e de parte da OLP, bem como a desaprovação de práticas de corrupção na condução da Autoridade Nacional Palestina, associados ao fracasso do processo de paz dos anos 1990 e à irrupção da Segunda Intifada em 2000. A tese equivocada de que o “fundamentalismo islâmico” - e, no caso palestino, o Hamas seria, segundo o senso comum, seu representante - abriga os ideais da maioria das sociedades muçulmanas do mundo é um profundo erro. Em termos político-ideológicos e econômicos, talvez ainda não seja possível determinar com precisão aquilo que o Hamas e seu programa político realmente representam, porém a estratégica política de luta e alguns de seus ideais os fazem assumir um papel dissonante daquele da globalização neoliberal. Em geral, hoje se diz que o dilema político dos EUA e da Europa no Oriente Médio é ter de escolher entre o apoio a muitas ditaduras militares de direita ou esquerda (porém laicas e seculares) e o respaldo a governos adeptos de um programa político-religioso islamista/fundamentalista (porém cada vez mais eleitos democraticamente).

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